- Não é impressionante como o artista mostra a dor da sua obra com cores tão vivas? - Naquele momento ele olhou-me, como se eu tivesse acabado de falar sobre mim. Tentei olhar para todos os pontos da sala na tentativa de encontrar algo que me captasse a atenção. Conhecia aqueles olhos observadores de cor e deixavam-me desconfortável. Era aquele olhar que me conseguia tocar sem pele e ler os meus pensamentos sem palavras. Finalmente consegui achar algo que me captava a atenção dentro daquelas quatro paredes. A minha obra favorita: o meu reflexo dentro dos seus olhos. Era curioso e ao mesmo tempo intrigante como eu me via tão brilhante dentro deles. Além de observadores, eram traidores por me fazerem sempre cair na mesma armadilha.
Ele observava-me tal como outrora observara as cores das obras. Vi-o então a rever a minha noite anterior pelas manchas negras em volta dos meus olhos: metade de um maço de cigarros, metade da noite passada em lágrimas e metade da minha alma vazia.
- Está tudo bem contigo?
- Está. - Respondi quase antes de ele me fazer a pergunta. Ele era um tanto previsível e ele sabia disso. Acho que ele tinha um certo gosto em me ver mentir mesmo eu tendo a consciência de que seria em vão.
- Se eu não te conhecesse tão bem, diria que foste inventada pelo autor destas obras.
Eu sabia onde ele queria chegar com aquilo mas fingi não entender. Eu tinha a terrível mania de pintar a minha dor de várias cores diferentes. Era a forma mais fácil das pessoas concluírem que tudo estava bem quando a minha destruição ainda só ía no início.
Tudo era metades em mim: metade de verdades e metade de mentiras; metade de sonhos e metade de desilusões; metade de dias e metade de noites. Eu vivia por metades. Como era possível alguém me reflectir como se fosse inteira? Haveria algo sobre mim que ele conhecesse e eu não?
- Continuas a ser a arte mais interessante desta sala, não te preocupes. - Disse ele em resposta ao meu silêncio. Tentei mostrar-me mais uma vez indiferente mas era difícil ele não me fazer sorrir pelo tom de voz brincalhão com que ele dizia as coisas. Ele era o rapaz mais descontraído da turma e tenho a certeza que era o mais cabeça no ar que aquela universidade já conheceu. Às vezes penso como é que ele conseguiu estudar-me tão bem ao ponto de saber até o tom de voz e as palavras certas para me fazer sorrir.
Eu poderia dizer que me estava a apaixonar por ele se não me tivesse apaixonado antes por outras pessoas. É algo diferente: é um misto de não o querer por perto mas de não me conseguir afastar dele; De perder a cabeça com as coisas que ele me diz mas de me encontrar naqueles momentos que não precisamos de palavras; De ter medo de irmos longe de mais mas de sentir que não há limites traçados entre nós.
- Vamos sair daqui. - Assustei-me quando entendi que ele estava perto de mim, o suficiente para me fazer arrepiar com a sua respiração colada ao meu pescoço.
Reconheci de imediato aquela frase. Foi a mesma que ele usou na noite de aniversário da Angélica, quando estávamos todos naquele bar junto ao rio. Involuntariamente tive a mesma reacção daquela noite: obedeci-lhe, mesmo sabendo que iria acontecer de novo tudo aquilo que disse a mim própria que não iria acontecer nunca mais.
Desta vez, ele não esperou até chegar ao seu quarto. Beijou-me com uma ânsia enorme onde toda a gente nos poderia ver que por momentos imaginei que a sua vida dependia daquele beijo. Caminhámos de mãos dadas, um pouco constrangidos, como se fossemos dois adolescentes a descobrir novos sentimentos que até aquele momento pensávamos não passarem de sentimentos irrealistas. Eu estava empenhada em distrair-me com tudo o que passava pelo meu olhar. Sabia que não podia evitar o que seria inevitável, mas pelo menos podia adiá-lo.
Chegámos rápidamente ao quarto. Talvez pela ânsia, o caminho parecia mais curto que o normal. Não demorou muito para que entrássemos de novo naquela batalha onde nenhum de nós iria sair com a vitória. Odiava quando o meu corpo não correspondia às necessidades da minha alma e deixava-se envolver em utopias criadas entre as sombras dos nossos corpos que se tatuavam entre as paredes, outrora sem vida. Era estranho como tudo parecia uma nova descoberta, mesmo conhecendo todos os ataques e todas as defesas de cor. Nenhuma funcionava connosco, aquela era uma batalha diferente. A vontade de ela acabar era menor.
A madrugada daquela noite estava gelada e o calor da minha casa pareceu-me ainda mais acolhedor quando entrei. Ainda havia alguns vestígios de que houve uma rotina durante a manhã, ansiosa para que voltásse ao final da tarde para os mesmos hábitos de sempre. Olhei para o meu reflexo no espelho da sala e pela primeira vez consegui ver-me brilhante. Consegui olhar de uma forma mais profunda para mim e percebi que todas as cores tinham desaparecido, era transparente e pela primeira vez não vi metades em mim. Estava finalmente inteira, tal como me via no reflexo dos seus olhos.